quarta-feira, 23 de abril de 2025

Orange

          Andrew deu dois toques fracos na porta e entrou antes mesmo de receber uma resposta.

          “En...”, Emma se interrompeu assim que viu o inglês entrando em seu quarto. “Ah, é você!” Ela, que estava deitada de bruços lendo um livro sobre radioatividade e formigas, se ajeitou na cama com as pernas dobradas, deixando o livro de lado.

          “E quem mais seria?”, perguntou Andrew, enquanto sentava na ponta da cama.

          “Nessa casa? Minha dinda? Zendaya? Mel? Levi? Theo?...”

          “Touché!”

          “Além do mais, faz muito tempo que você não entra no meu quarto.”

          Embora não houvesse na voz de Emma espécie alguma de ressentimento, Andrew não deixou de notar que a frase si continha certa mágoa. Apesar disso, o professor decidiu ignorar tal percepção, pegando o livro que estava em cima da cama e lendo a capa. A radioatividade e as formigas: uma relação muito mais próxima do que a humanidade imagina.

          “Não sei quem é mais idiota: quem fez esse livro ou quem o lê. Você não cansa de ler sobre animais não?”

          “Para começo de conversa, esse livro não é só sobre animais, o autor passa muito tempo falando sobre radioatividade.”, retrucou Emma puxando bruscamente o livro da mão do padrasto. “Em segundo lugar, se você lesse o livro, veria que não existe nada de idiota nessa relação.”

          “Eu não me odeio tanto para passar por uma tortura dessas!” Já basta a bebê que nasceu...

          “O que você veio fazer aqui, além de criticar o meu livro?” Não havia acusação, apenas uma genuína curiosidade. Andrew, ainda assim, fingiu se sentir ofendido.

          “Quer realmente se livrar de mim, hein?”, perguntou ele colocando teatralmente a mão no coração.

          “Você sabe que não.”

          A sinceridade de Emma sempre surpreendia Andrew. Era uma frase simples, mas o modo como ela dizia, o modo como ela o olhava, se portava diante dele, tudo isso fazia o seu coração bater muito rápido. Não importava quantos anos se passassem nem o quanto tentasse se manter afastado: sempre seria a Emma. Ninguém mais além dela.

          “Bem, eu vim... em um timing perfeito, diga-se de passagem...”, o professor se curvou e pegou um objeto que tinha deixado no chão, ao lado da cama, “te dar esse livro”. Ele então entregou um livro para a enteada.

          Emma percebeu que era o objeto que Andrew estava segurando quando entrou no quarto, mas que havia deixado de lado assim que sentara na cama. Curiosa, analisou a capa. “Orange?”, indagou a garota, ao ler o título do livro que levava uma laranja na capa.

          “Você precisa ficar obcecada por outra coisa além de animais. Pensei que fruta seria uma boa ideia.”

          “Erika Houffman.”, Emma leu o nome da autora. Ela abriu as páginas do livro ainda sem entender por que havia ganhado tal presente. “É bom?”

          “Não sei, você quem vai me dizer.”

          “Deixa eu ver se eu entendi... você foi para uma livraria e viu um livro sobre laranja, daí pensou ‘Laranja me lembra... Emma! Vou comprar!’”, questionou a garota ainda sem entender do que se tratava aquilo. Provavelmente era a forma que Andrew havia encontrado de se aproximar. Forma meio incomum, ela não podia deixar de notar, e completamente desnecessária. Não importava o quanto eles se afastassem, ela nunca deixaria de falar com ele por conta disso. Ela sabia que ele estava meio para baixo por conta da bebê, embora fingisse estar bem. A verdade é que mais do que chateada, Emma estava preocupada com o inglês.

          “Mais ou menos. Eu não comprei o livro, eu escrevi.”

          “Você é a senhora Houffman?”

          Andrew soltou um risinho com a pergunta e assentiu.

          “Definitivamente: uma reviravolta.”

          “É um pseudônimo.”

          “É mesmo? Não tinha percebido.”

          “Faz uns 7 anos que estive trabalhando nele e só agora ficou pronto.”

          “E eu vou ser a primeira leitora?”

          “Segunda, na verdade. Meu editor foi o primeiro.”

          “Pretende lançar?”

          “Talvez. Ainda não sei exatamente o que fazer com ele.”

          Ai, essas conversas que dizem muito sem dizer nada, que rodeiam e tangenciam a verdadeira questão. Não era preciso ser um gênio para adivinhar que “Orange” era sobre ela, Emma. A ruiva continuou olhando o livro enquanto Andrew a observava em silêncio. Tantas coisas passavam pela sua cabeça. Andrew era de escrever livros infantis, contos. Agora, um romance? De... 447 páginas? O que havia tanto sobre ela que ele pudesse falar? Era sobre o relacionamento dos dois? Um triângulo amoroso? Não havia informação alguma na contracapa que indicasse o enredo.

          “Não tem sinopse?”

          “Ainda não. Eu ainda vou fazer...”. Andrew parecia ansioso. “Quer que eu faça um resumo?”

          “Por favor.”, Emma disse tentando conter a ansiedade.

          “A história é sobre... Bem, não me odeie por isso, eu sei que é uma heresia, mas a licença poética... Você sabe, né? Ela permite certas liberdades... É sobre o irmão de Deus.”

          Emma estava mais confusa do que nunca.

          “Irmão talvez não seja a melhor palavra. Quando não existia nada, havia Deus... e ele. Esse ser também tinha poder, mas não teve a mesma ‘ambição’ de Deus. Ele não criou nada, não participou de nada, só via as coisas acontecendo. O poder dele também era mais limitado, apesar de também conseguir criar as coisas. Mas como eu falei, ele nunca criou nada, só era um mero espectador. Bem, ele acompanhou o mundo desde o seu começo, viu todos os acontecimentos, antes e depois da vinda de Jesus, tudo, tudo, tudo. Assim como Deus, ele também é onipresente, ou melhor, pode ser onipresente. Por favor, não julgue antes de ler, mantenha na cabeça a licença poética que te falei. Esse ser não é Deus, pelo contrário, ele respeita muito a divindade. Ele só não entende por que Deus tem tanto apego a essas criaturas... são tão sem graças, imperfeitas... Uma ou outra tem certa graça, mas nada que justifique sua existência ou tamanho sacrifício. E assim ele vai acompanhando o passar dos anos, entretido em certos momentos, entediado em outros. Os humanos vão passando a ser muito previsíveis até mesmo em suas guerras, as coisas deixam de ser novidade, sabe? Tudo é muito circular, é a mesma coisa com novos rótulos. Só que tudo muda quando ele passar a reparar em uma garota em particular... Ela já existia, mas nunca havia chamado atenção desse ser com a sua presença... até que um evento faz com que ele comece a percebê-la e, mais do que isso, se interesse o suficiente para querer acompanhá-la... E o enredo é basicamente esse.”. Andrew então segurou as duas mãos de Emma. “É uma blasfêmia, eu sei, mas leia com o coração aberto. A intenção esteve unicamente em expressar a intensidade dos meus sentimentos naquele momento. Vai ter muitos monólogos bregas, muitos mesmos, mas o amor não é isso? Um monte de breguice que faz sentido pra quem sente?” Ele largou gentilmente as mãos de Emma. “Não precisa ter pressa para ler, só me diga depois o que achou. Pode terminar o livro das formigas primeiro, tenho certeza que, embora inútil, seja mais interessante. E desculpa a metáfora óbvia. Nem sempre você está ruiva. Existem laranjas amarelas, sabia? De qualquer forma, laranjas me lembram você. Até as verdes, vai entender?! Enfim...”, disse o professor se levantando da cama. “Depois nos falamos.”

          E Andrew saiu antes de receber uma resposta de Emma e, que bom, porque ela mesma não sabia o que falar.