Antonella estava posicionando, com a ajuda de Calvin, os
quadros de sua mais nova exposição pela galeria. Era a última que faria durante
muito tempo, afinal sua Daisy estava para nascer em meados de julho, se tudo
desse certo. A ideia era oferecer ao visitante uma experiência sinestésica que
envolvesse os quatro sentidos. Isso a fez gastar muito dinheiro, indo muito
além do que tinha, mas a galeria TINHA que ser um bom investimento e, por isso,
ela tinha que arriscar tudo no lançamento.
– Acho que esse foi o último. – Falou Calvin, após
posicionar o último quadro que estava no caminhão.
– Acho que sim. – Respondeu Antonella analisando o todo.
Calvin parou ao lado dela para também analisar:
– O que achou?
– Não sei... – Respondeu a italiana, franzindo a testa
pensativa – O que você achou? Como você ta se sentindo vendo os quadros?
– Bem.
A resposta não agradou Antonella.
– Te traz alguma recordação ou algo assim? Faz com que você
sinta alguma emoção?
– Faz sim.
A ex-professora do Cavalinho Feliz ficou esperando um
complemento que não veio. Calvin não era o melhor sócio que poderia ter. Ele
nem entendia direito de Pintura, mas estava disposto a investir, que era o que
ela precisava na época.
– Pra mim, os quadros tão lindos e vai ficar ainda mais
legal quando der pra sentir o cheiro de bolinho de chuva e tiver leite pra
beber.
– Você como brasileiro consegue se identificar com essa
infância representada?
– Consigo.
– Que bom! ...É que eu sei que minhas duas filhas são
brasileiras, mas nunca se sabe, né? Como o pai dela e eu não somos daqui, a
gente nunca tem certeza se a experiência está sendo brasileira.
– Bolinho de chuva é do Brasil... Eu acho.
– Mas eu só coloquei, porque você falou. Eu ia colocar
biscoito.
– Ah é! Mas é que aqui a gente não tem muito isso de fazer
biscoito não. É mais bolo de fubá com erva-doce, bolo de laranja.
– Sim, sim.
– Eu vou trazer os meus filhos aqui amanhã e ver o que eles acham, se eles se identificam com os detalhes da infância que você trouxe. Isso se der, né? Nem o Jamie nem a Jane são lá muito caseiros. Vai ver já têm compromisso.
– Ah, seria bom. Veja sim, por favor. Se não der amanhã,
pode ser outro dia.
– Ok, eu te aviso.
Antonella continuou analisando os quadros e a galeria como
um todo. Já Calvin foi ver algumas questões burocráticas, mas, pouco tempo
depois, teve que ir para o trabalho.
Durante um tempo a italiana ficou incomodada com alguma
coisa que ela não conseguia identificar exatamente o que era. Seus pensamentos
foram interrompidos com Asa dizendo:
– Ficou bem legal, mãe.
– Você acha? – Ao terminar de perguntar, ela se virou sorrindo
para Asa e percebeu a presença de uma segunda pessoa naquele lugar olhando ao
redor: Andrew. – Como foi a consulta? – Perguntou, só olhando para o filho.
– The same. – Ele deu de ombros, olhando a galeria.
– Oi. – Disse Andrew.
– Oi. – Respondeu Antonella sem olhá-lo.
Percebendo que não passariam disso, Andrew se aproximou do
filho, dando um beijo no rosto dele e dizendo:
– Eu já vou. Tchau, filho!
– Tchau, pai.
– Tchau.
– Tchau.
Ele se virou pra ir embora, mas antes de ir, gritou:
– Essa pintura de tangerina ta meio pornográfica no meio
dessas coisas que lembram a infância, não?
– Como? – Antonela perguntou ofendidíssima. – Da onde você
tirou que tangerina é algo pornográfico? O cheiro da tangerina lembra a
infância de muita gente!
– Minha sina / Gana suicida / Morte divina / Doce tangerina
/ Em câmera lenta / Acompanho o teu suor / De encontro ao meu / A gota da seiva
do céu / Ninguém faz melhor / Que você e eu / Me agarro na tua nuca / Daqui não
largo nunca mais.
– E o que significa isso?
Andrew se vira para ela, faz um v com os dedos e coloca a
língua no meio, a fim de que Asa não visse. Antonella fica chocada com o gesto obsceno.
– Mas assim, Ferreira Goulart tem um poema chamado “O cheiro
da tangerina”. Manuel de Barros também escreveu algo do tipo, se não me engano.
Eu só não colocaria uma tangerina realista assim sem contextualização. Nunca se
sabe... – Ele disse de costas, saindo da galeria.
A italiana observa com raiva Andrew saindo da galeria.
– Agora vê, que crítica mais idiota e sem sentido. Nunca
ouvi falar de uma coisa dessas. Tangerina é algo pornográfico? Só se for na
cabeça desse... desse...
– Libertino.
– Isso, Asa. Libertino! Banana até vai, agora tangerina? E
tem mais: a pornografia ta nos olhos de quem vê. Se uma banana estivesse numa
exposição chamada “Detalhes da infância”, ninguém iria dizer que é pornográfico,
só o seu pai.
– É verdade.
Antonella ficou mais um tempo analisando a pintura junto com
os outros quadros.
– Melhor tirar? – Perguntou derrotada.
– Melhor tirar. – Concordou Asa.