domingo, 27 de setembro de 2020

Cabe nós dois

Ela odiava quando isso acontecia, mas seus pesadelos estavam ficando cada vez mais constantes. Eles eram tão vívidos que normalmente ela despertava num susto e ia para a cozinha tomar um copo de água na tentativa de se acalmar e voltar a dormir. E para completar ela não estava dormindo na posição que estava acostumada pela presença da pequena protuberância na região frontal. Não que ela não conseguisse mais ficar de barriga para baixo, mas ela tinha medo de esmagar o bebê e achava melhor dormir de lado. 

A ruiva tomou sua água e foi para a sala sentar um pouco. Enquanto aguardava o susto passar, seu olhar cruzou a caixa de papelão de Andrew com livros empilhados dentro. Naturalmente, Jessica pensou ser uma boa ideia ler um pouco para afastar a cabeça de pensamentos ruins e pegar no sono novamente. A advogada tirou alguns livros de dentro da caixa e um com uma ilustração colorida na capa prendeu sua atenção. Ao abaixar o olhar, ela viu o nome do autor, Andrew Butterfield. Então aquele era um dos livros infantis que seu noivo tinha escrito. Jessica fitou a capa do livro por alguns segundos, pensando em como aquele livro parecia adorável. Ela abriu a primeira página e se viu lendo a pequena e divertida história de uma vez só. No final da leitura, lágrimas preencheram os olhos da ruiva, tocada por tamanha sensibilidade do noivo na escrita infantil. Ele parecia entender tanto sobre o universo das crianças e tinha tanto gosto em entretê-las. Jessica ficou pensativa por longos minutos. Imagens do inglês brincando com a bebêzinha deles invadiram sua mente. Jessica fechou o pequeno livro infantil e colocou junto com as outras coisas da caixa. Ela voltou para a cama, colocando o braço de Andrew com cuidado em volta de si, se aproximando até ficar apenas centímetros de distância do professor e voltou a dormir. 

No dia seguinte, Andrew foi o primeiro a acordar.

"Bom dia." Ele alcançou a noiva e acariciou seu cabelo, quando a mesma acordou. "Dormiu bem?"

"Mais ou menos. Eu não consegui mais dormir de barriga pra baixo e isso acabou atrapalhando um pouco meu sono."

"Ela deu uma crescida né?" Andrew não conseguiu esconder o entusiasmo.

"Deu." A ruiva concordou.

"Eu posso sentir um pouco?" Andrew olhou-a como aqueles cachorros carentes que você não consegue dizer não.

"Claro." Jessica ainda achava que era melhor não criar laços com a criança, porém ela estava num estágio no qual não conseguia negar-lhe mais nada. 

Andrew se aproximou da ruiva, levantou a camisa dela e colocou a mão sobre sua barriga. Ele acariciou carinhosamente, sem conseguir conter a emoção.

"Desculpa." Andrew queria ter parecido mais indiferente àquele momento, porém a cada dia que passava a bebê parecia mais real. 

"Não precisa." Jessica tocou o rosto do noivo amorosamente e ele se aproximou para beijá-la.

"Sabe, eu acabei lendo um livro seu ontem." Jessica confessou, brincando com os dedos do professor. 

"Sério? Qual?"

"Aquele infantil."

"Ah." Andrew se deu conta que ela estava falando de um que ele escreveu e não de um que ele levara para ler.

"Eu gostei muito. Você escreve muito bem."

"Obrigado."

"Eu queria ler outros. Você tem eles aqui?"

"Eu só trouxe aquele mesmo. Mas eu posso trazer o resto depois."

"Tá bom."

"Agora que você já invadiu a minha privacidade e leu meu livro, você podia cantar pra mim."

"Não."

"Só um pouquinho. Todo o mundo já te ouviu cantar menos eu."

"Ok. Mas sem ser lírico."

"Você me prometeu um Eleanor Rigby em lírico, mas por ora pode ser uma com a sua voz normal."

"Qual música?"

"Qualquer uma."

"Deixa eu pensar em uma.."

"Você tá enrolando!" 

"Tá bom, tá bom."

Jessica começou a cantar serenamente. 

"Meu amor, essa é a última oração

Pra salvar seu coração

Coração não é tão simples quanto pensa

Nele cabe o que não cabe na despensa

Cabe o meu amor

Cabem três vidas inteiras

Cabe uma penteadeira

Cabe nós dois

Cabe até o meu amor, essa é a última oração

Pra salvar seu coração

Coração não é tão simples quanto pensa

Nele cabe o que não cabe na despensa

Cabe o meu amor

Cabem três vidas inteiras

Cabe uma penteadeira

Cabe nós dois

Cabe até o meu amor, essa é a última oração

Pra salvar seu coração

Coração não é tão simples quanto pensa

Nele cabe o que não cabe na despensa

Cabe o meu amor

Cabem três vidas inteiras

Cabe uma penteadeira

Cabe nós dois."

Andrew aplaudiu no final da música. 

"Bravo! Posso ouvir outra?" 

"Não." Jessica deu um beijo rápido no rosto do inglês e levantou da cama. 

"Por quê?" Andrew se sentou. 

"Outro dia. Minha voz cansou. Cof cof"

"Mas você não cantou nem dois minutos!" 

"Continua resmungando e eu corto meu lírico inédito de Eleanor Rigby. Agora, levanta pra fazer a skincare." 

"Oh look all the lonely people." Andrew começou a cantar. 

"Nem adianta."

"You're just too good to be true." Andrew cantou novamente, debochado. 

"Implicante."

Andrew riu e seguiu a ruiva até o banheiro. 

segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Here's where the story ends

    – Oi! Como vai?

    – Vou bem e você, Rita? A Antonella está?

    – Está sim. O senhor quer entrar?

    – Por enquanto não, obrigado.

Pouco tempo depois, Antonella apareceu na porta com a mão suja de terra. 

    – Asa is not here.

    – Oh, too bad! I wanted to take Crystall and him for a walk. I should have called earlier.

    – Yeah.

    – Luckily, I didn’t come here for nothing because I was also wanting to talk to you. I know I owe you an apology for what Octavia said or implied the other day about you, so, for that, I'm sorry.

    – OK.

    – You forgave me?

                                   

    – I don't even care anymore.    

    – ...

    – ...    

    – ...

    – Is that all?    

    – I swear I won't talk to anyone about it anymore.

    – If you say so…

    – Jesus, Antonella. I’m sorry! I'm being honest, really. I'm feeling bad, I shouldn't have said anything.

    – The past is in the past. You have a lot on your mind. Never mind.

    – I do it for Asa. We already argued too much. It doesn't do him any good to see us arguing again.

    – Oh, so that's why you apologized to me? Because of Asa?

    – No, I know I was wrong. But I want you to forgive me, because it's not good for him to see us fighting.

    – What exactly are you apologizing for?

    – For telling Octavia... something... that only concerns both of us.

    – I didn't even know her and she already had an opinion about me.

    – I know, I'm sorry.

    – You don't know how bad it made me feel...

    – I'm sorry, I'm sorry.

    – I know this is part of your story and you have the right to tell it, but to that woman? Did you really need to have told it to that woman? What is her relation to you?

    – I know, I'm sorry.

    – I just wish you had been honest with me and admitted that you didn't forgive me instead of lying to the psychologist saying that you understand me.

    – I understand you, I swear, I understand you.

     Oh really? Because it doesn't seem like. I felt like crap when I cheated on you. A crap. But I couldn't take that situation anymore, because I felt like crap with you too. I felt like I was a terrible person. A terrible mother, a terrible wife...

     I’m sorry. I didn't want to make you feel that way.

    – I didn't leave the house thinking "I'm going to cheat on Andrew today". I ended up giving in, because I was mentally exhausted. I didn't feel loved, I felt excluded in my own home. When you came from work, Asa only paid attention to you. You both watching cartoons and having fun while I looked at you, feeling like an outsider. You worked with what you liked and I stayed at home being a mother and a maid. I didn't even paint anymore. I had no time or inspiration. Andrew, if you knew how much I loved you, you would never open your f*cking mouth again to say something bad about me. I loved you much more than you ever loved me. You just have this anger at me, because you felt humiliated in the end. It wasn't for me, it was for you. You say that you were cheated to make people feel sorry for you, even if I cheated you only once!

    – I never knew you cheated on me just once. You never told me that. In fact, you never tell me anything. That is the problem! You want me to guess everything: you want me to guess that you had postpartum depression, you want me to guess that you were extremely unhappy, you want me to guess that you cheated on me because you “loved me much more than I ever loved you”. You know what, Antonella? F*ck you! As soon as I found out that you were completely dissatisfied with our marriage and wanted to end it all, what did I do? Did I say, “Okay! You can go now."? No! I asked you, no, I begged you to forgive me. I said I would get better, that we could start over, that I would be another man, but you said no only to punish me for not reading your thoughts. I also heard a lot from you about me that made me really sad, we both hurt each other, it wasn't just you who were hurt.

    – Do you know what I discovered a few days ago, Andrew? That you dated Marianne! The woman who was flirting with you while I was at home taking care of our son.

    – I dated her because I was broke. I was really bad, I don't know if you heard. But Marianne and I were way better than you, after three months, moving in with another man and our son under the same roof. It was the biggest mockery I've ever spent in my life.

    – I started living with John, because I needed to forget you! I needed to start my life over and feel loved. At the end of the day, you play the poor thing as if the divorced life were horrible. Oh, poor Andrew, full of women around him, flirting with anyone who wears panties. Poor thing, he f*cks one woman a week, but the poor guy wanted to be married. What about me who lived all these years in a marriage with a man I never got to love, because I was impulsive wanting to forget you and restart my life? While you had a thousand lovers during those years, I comforted myself with the love I have for my children. While you slept thinking about another one, I slept thinking that I didn't even have the financial dependence to end a relationship and still continue to give the life that my children always had. I expected to love and be loved, but now I am more alone than ever, without the courage to destroy another family, because, as always, I am the villain. And you... You're getting married... Andrew, you're getting married...

TRADUÇÃO

    – Oi! Como vai?

    – Vou bem e você, Rita? A Antonella está?

    – Está sim. O senhor quer entrar?

    – Por enquanto não, obrigado.

Pouco tempo depois, Antonella apareceu na porta com a mão suja de terra. 

    – O Asa não está.

    – Ah, que pena! Queria levar ele e a Crystall para passear. Deveria ter ligado antes.

    – É.

    – Olha, felizmente não foi viagem perdida, porque eu também estava querendo falar com você. Eu sei que eu te devo um pedido de desculpas pelo o que a Octavia disse ou insinuou outro dia sobre você, então me desculpa.

    – Ok.

    – Você me perdoou?

    – Eu nem me importo mais.    

    – ...

    – ...

    – ...

    – É só isso?

    – Eu juro que não vou falar mais sobre o assunto com ninguém.

    – Você quem sabe...    

    – Jesus, Antonella. Me desculpa! Eu estou sendo sincero, sério. Estou me sentindo mal, não deveria ter falado nada.

    – Andrew, já foi. Você tem muita coisa na sua cabeça. Deixa para lá.

    – Eu faço isso pelo Asa. A gente já brigou demais. Não faz bem para ele ver a gente brigado de novo.

    – Ah, então é por isso que você me pediu desculpas? Pelo Asa?

    – Não, eu sei que errei. Mas queria que você me perdoasse, porque não faz bem para ele nos ver brigado.

    – No que você errou exatamente?

    – Em ter contado para a Octavia... nossa... intimidade.

    – Eu nem conhecia ela e ela já tinha um pré-julgamento meu.

    – Eu sei, me desculpa.

    – Você não sabe o quanto isso me fez mal...

    – Me desculpa, me desculpa.

    – Eu sei que isso faz parte da sua história e você tem o direito de contá-la, mas para aquela mulher? Você realmente precisava ter contado para aquela mulher? O que ela é sua?

    – Eu sei, me desculpa.

    – Eu só queria que você fosse honesto e me dissesse que não me perdoou em vez de ficar mentido para a psicóloga dizendo que me entende.

    – Eu te entendo, eu juro que te entendo.

    – Sério? Porque não parece. Eu me senti um lixo quando te traí. Um lixo. Mas eu não aguentava mais aquela situação, porque eu me sentia um lixo com você também. Eu sentia que era péssima. Uma péssima mãe, uma péssima mulher...

    – Me desculpa. Eu não queria ter feito você se sentir assim.

    – Eu não te traí de caso pensado. Eu acabei cedendo, porque eu estava mentalmente exausta. Eu não me sentia amada, eu me sentia excluída na minha própria casa. Quando você chegava, o Asa só dava atenção para você. Os dois ficavam assistindo desenho, se divertindo e eu ficava só olhando para vocês. Você trabalhava com o que gostava e eu ficava em casa sendo mãe e empregada. Eu nem pintava mais. Não tinha tempo nem inspiração. Andrew, se você soubesse o quanto eu te amava, você nunca mais abriria essa sua boca de m**da para falar de mim. Eu te amei muito mais do que você jamais me amou. Você só tem essa raiva de mim, porque você se sentiu humilhado no final. Não foi por mim, foi por você. Você fala que foi traído para as pessoas ficarem com pena de você, sendo que eu te traí só uma vez!

    – Eu nunca soube que você me traiu só uma vez. Você nunca me disse isso. Na verdade, você nunca me diz nada. Esse é o problema! Você quer que eu adivinhe tudo: você quer que eu adivinhe que você teve depressão pós-parto, você quer que eu adivinhe que você estava super infeliz, você quer que eu adivinhe que a sua traição foi porque você “me amava mais do que eu jamais te amei”. Quer saber, Antonella, vai se f***r! Assim que eu descobri que você estava completamente insatisfeita com o casamento e queria acabar com tudo, o que eu fiz? Eu disse: “Ok! Pode ir.”? Não! Eu te pedi, ou melhor, eu te implorei para me perdoar. Eu disse que iria melhorar, que podíamos recomeçar, que eu seria outro homem e só pra me punir por não ter lido os seus pensamentos você disse não. Eu também ouvi muita coisa vinda de você sobre mim que me deixou muito mal, nós dois nos magoamos mutuamente, não foi só você que foi magoada.

    – Sabe o que eu descobri há poucos dias, Andrew? Que você namorou a Marianne! A mulher que ficava flertando com você enquanto eu ficava em casa cuidando do nosso filho.

    – Eu namorei ela, porque eu estava quebrado. Eu fiquei muito mal, não sei se você soube. Mas melhor a Marianne e eu do que você depois de três meses já indo morar com outro homem e o nosso filho debaixo do mesmo teto. Foi o maior deboche que eu já sofri na vida.

    – Eu comecei a morar com o John, porque eu precisava me esquecer de você! Eu precisava recomeçar a minha vida e me sentir amada. No final do dia você se faz de coitadinho como se a vida de divorciado fosse horrível. Oh, pobre Andrew, cheio de mulheres ao redor dele, flertando com qualquer uma que usa calcinha. Coitado, ele fo** uma mulher por semana, mas o pobrezinho queria ser casado. E eu? E eu que vivi esses anos todos presa em um casamento com um homem que eu nunca consegui amar, porque eu fui impulsiva querendo te esquecer e refazer a minha vida? Enquanto você teve mil amores durante esses anos, eu me consolei com o amor que eu tenho pelos meus filhos. Enquanto você dormia pensando em outra, eu dormia pensando que eu não tinha nem dependência financeira para terminar um relacionamento e, ainda assim, continuar dando a vida que os meus filhos sempre tiveram. Eu esperei amar e ser amada, mas agora estou mais sozinha do que nunca, sem coragem de destruir mais uma família, porque, como sempre, eu sou a vilã. E você... E você agora vai se casar... Andrew, você vai se casar...

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

Complicações

Octavia estava preparando o almoço quando escutou o grito da Jessica vindo do quarto. Spencer largou tudo o que estava fazendo e correu para acudir a afilhada. Ao adentrar ao quarto, ela viu Jessica encolhida na cama com a mão sobre a barriga, protetoramente.

"Dinda, ta doendo muito." Jessica disse com dificuldade, contorcendo o rosto em dor. Tamanha a qual, que fazia a ruiva sentir que estava perdendo o filho naquele momento. 

"Calma minha filha. Eu vou ligar pro médico." Octavia foi correndo pegar o telefone atropelando alguns objetos a sua frente. Ela discou o número do Dr. Fernandes se atrapalhando com as teclas do aparelho. 

"Alô." O médico atendeu.

"Doutor, é a Jessica. Ela ta com dor. Eu acho que ela ta perdendo." Octavia falou nervosa.

"Ela tá sangrando?" O médico perguntou mantendo a compostura.

"Deixa eu ver." Octavia foi até a Jessica e examinou a ruiva. "Acho que não. Mas ela tá com tanta dor que nem tá conseguindo manter os olhos abertos." Octavia sentou do lado da afilhada e acariciou seu braço.

"Não deixa ela se levantar. Eu tô indo pra aí."

"Obrigada." Octavia desligou o telefone e voltou a sua atenção à afilhada.

"O médico já tá vindo. Aguenta firme." Octavia tentou acalmá-la.

Jessica não respondeu. Ela estava concentrada em respirar e manter o bebê vivo. Mentalmente ela pedia para o bebê ser forte e não deixá-la.

Dentro de alguns minutos o médico tocou a campainha e Octavia correu para atender a porta.

"Onde tá a Jessica?" Dr. Fernandes perguntou ao ver a madrinha da ruiva.

"No quarto dela." Octavia apontou e seguiu com ele para o quarto da afilhada. 

O médico se sentou de frente à ruiva.

"Onde ta doendo? No abdomen?"

Jessica assentiu, sem força pra falar.

O médico examinou a ruiva minuciosamente e depois aplicou um medicamento.

"Bom, o bebê está bem. Essa dor foi só uma contração involuntária, mas nada de grave. Eu injetei um remédio pra dor e você deve se sentir melhor em alguns minutos." Dr. Fernandes informou. 

"Então, eu não perdi o bebê?" Jessica sorriu apesar da dor. Aquela era uma notícia tão boa. Seu bebê estava a salvo, pelo menos por enquanto. 

"Não. Mas eu preciso que você repouse o resto da semana. Não é necessário ficar na cama o dia inteiro, mas não saia de casa." Dr. Fernandes fechou a maleta.

Jessica assentiu. 

"Octavia, me leva até a porta?" Dr. Fernandes levantou da cadeira. 

"Claro, doutor."

Os dois foram até a sala.

"Que bom que foi só um susto!" Octavia exclamou aliviada.

Jessica viu que o médico havia esquecido o material de coleta no seu quarto. Ela ainda sentia um pouco de dor, mas já estava entrando na faixa do tolerável. A ruiva se levantou e foi até a sala para devolver o material. Jessica estava quase adentrando o cômodo, quando ouviu a voz do médico. 

"Eu vou ser honesto com você. A Jessica não tá nada bem. Ela deve conseguir segurar a gravidez por uma ou duas semanas, no máximo. Lamento ter que dar essa notícia." Dr. Fernandes olhou para Octavia compadecido. 

"Mas você disse que ele estava bem..." Octavia retrucou em negação.

"Eu não quis assustar a Jessica, mas a verdade é que o bebê está morrendo. Os batimentos cardíacos dela e do bebê estão muito fracos." Dr. Fernandes explicou. 

"Deus tenha misericórdia da minha menina." Octavia falou desolada.

Jessica deu meia volta e voltou para a cama. Suas lágrimas começaram a cair silenciosamente. 

Octavia foi dar uma checada na afilhada antes de terminar de fazer o almoço.

"Como você tá se sentindo, filha?" Octavia se sentou do lado da Jessica.

"Melhor." A ruiva mentiu.

"Tenta dormir um pouco até o almoço ficar pronto." Octavia ajeitou os travesseiro atrás da ruiva.

"Dinda?"

"Fala, filha."

"Você pode não falar pro Andrew o que aconteceu? Ele já tá muito sobrecarregado com a gravidez e o trabalho. Eu não quero que ele tenha mais isso pra se preocupar."

Jessica achava que não conseguiria aguentar a cara de tristeza do namorado disfarçada por indiferença, mais uma vez. 

"Tudo bem." Octavia cobriu a ruiva com o lençol. "Agora descansa."

Jessica assentiu e sua madrinha deixou o quarto.

A advogada fechou os olhos e deixou as lágrimas escaparem livremente. Não importava quantos abortos ela tivera, ela nunca se acostumaria com a perda de um filho. Sim, para ela aquele feto já era um filho. 

Ouvir aquelas palavras do médico de que seu bebê sobreviveria no máximo por mais duas semanas era como se tivessem passado por cima de seu coração repetidas vezes. 

Jessica sentiu outra ânsia de vômito, a segunda do dia, e foi para o banheiro colocar tudo pra fora. A ruiva se pendurou no vaso sem forças para ficar de pé. Ao terminar, ela limpou a boca com as costas da mão e deu descarga. Naquele momento ela queria sumir, ou pelo menos que a dor que ela estava sentindo diminuísse, pelo menos um pouquinho. A ruiva abriu a terceira gaveta do banheiro e encarou a gilette à sua frente com os olhos angustiados. Ela sabia que aquilo daria um pouco do que ela tanto precisava, mas ela não queria machucar o bebê. Porém, se ela fizesse um ou dois, no máximo três pequenos cortes no braço, ou melhor, na perna, não aconteceria nada com o bebê e em contrapartida, ela se sentiria bem melhor. Jessica pegou a gilette com as mãos trêmulas a arrancou a lâmina do pedaço de plástico. Ela cortou um pouco os dedos no processo e seu sangue começou a escorrer, dando uma pequena prévia do que estava para acontecer. Jessica rodou a lâmina nos dedos e fechou os olhos numa luta interna se ela realmente faria aquilo ou não. Ela prometera a si mesma que não se machucaria enquanto estivesse grávida e ela precisava cumprir essa promessa. Jessica respirou fundo, inspirando e expirando lentamente e repetidas vezes até a urgência de se cortar passar. Num ato de bravura, ela jogou a lâmina fora.

****

Andrew chegou em casa depois da hora do almoço e viu Octavia sentada no sofá lendo a bíblia. 

"Oi." Andrew cumprimentou-a. 

"Oi, filho." Octavia fechou a bíblia com cuidado e transferiu sua atenção a ele. 

"A Jessica, como tá?" 

"Bem. Só tá um pouco cansada. Ela tá no quarto dela descansando um pouco."

"Eu vou lá ver."

Andrew entrou no quarto da ruiva e encontrou-a deitada. Ele se aproximou para checar se ela estava dormindo e descobriu que não. 

"Como você tá se sentindo?" Andrew sentou do seu lado e tocou seu braço. 

"Bem." Jessica mentiu, não se dando ao trabalho de olhá-lo. 

"Eu vou tomar um banho e já venho ficar aqui com você." Ele beijou o ombro da ruiva. 

"Como foi o trabalho?" Jessica perguntou fria. 

"Nada demais." Andrew respondeu estranhando o tom de voz da ruiva. 

***

O professor foi ignorado pela ruiva o resto do dia. Já era noite e a ruiva trocara no máximo três frases com ele. Na hora de dormir Andrew se acomodou na cama ao seu lado. 

"Eu quero dormir sozinha hoje. Você pode usar o quarto de hóspedes." Jessica disse ríspida. 

"É sério?" Andrew perguntou surpreso. 

"Sim." Jessica respondeu impaciente. 

"Ta bom. Boa noite." Andrew pegou o travesseiro e saiu do quarto. 

Jessica não sabia porque ela se boicotava tanto. Ela ia acabar afastando ele de vez. A ruiva tentou dormir, mas estava assustada demais com tudo o que havia acontecido para pegar num sono. Ela tinha medo de dormir com o bebê vivo e acordar com ele morto. Máximo de duas semanas havia sido a previsão do médico. Ela teria no máximo duas semanas para se despedir de seu bebê. De forma inconsciente, ela tocou sua barriga. 

A ruiva pensou no Andrew e em como ela fora hostil com ele o dia inteiro. Ela queria não ser assim e poder admitir que precisava dele. Jessica não sabia dizer se era coisa da sua cabeça, mas ela sentia o feto, que não tinha nem cérebro ainda, pedindo para ficar perto do pai, porque aquele desejo todo de tê-lo por perto não podia tá vindo só dela, certo? 

Jessica levantou e foi até o quarto de hóspedes. A ruiva bateu a porta de leve e abriu. Andrew estava sentado na cama com um livro na mão, porém sem lê-lo. 

"Eu não tô conseguindo dormir sem você." Jessica revelou da porta com uma doçura que ele não havia visto o dia inteiro. 

"Vem cá." Andrew colocou o livro de lado e recebeu a ruiva nos braços que o abraçou fortemente. 

Estar nos braços de Andrew trouxe todo o conforto de que estava precisando. De alguma forma, naquele momento, Jessica sentiu que ela e seu filho estavam protegidos de todo mal. 

Andrew apertou Jessica com força e a ruiva escondeu o rosto no vão da sua nuca. 

"Eu te amo." Jessica disse sinceramente e beijou sua nuca. "Eu te amo muito." Ela deu outro beijo.

"Eu também te amo." Andrew respondeu. 

"Desculpa ter sido uma vaca." Jessica levantou a cabeça e fitou seus olhos.

"Eu não te achei uma vaca." Andrew riu. 

"Eu fui sim e das maiores." Jessica segurou o rosto do namorado e acariciou com o polegar. 

"Quanto exagero!" Andrew brincou com a ruiva. 

Jessica riu. "Volta pro outro quarto comigo?" A ruiva pediu esperançosa. 

"Claro."

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Enjoos

"Eu comprei um vestido tão bonito pra você ir." Jessica tentou convencer sua afilhada. Ela estacionou o carro e saiu.

"Eu nem conheço a garota!" Emma contra-argumentou.

"Vocês chegaram a brincar juntas quando você era pequena." Jessica estava caminhando e parou de andar, de repente.

"Que foi?" Emma parou abruptamente e segurou a cintura da madrinha que tentava se manter em pé com dificuldade.

"Nada. Só minha pressão que baixou um pouco." Jessica fixou o olhar na afilhada, esperando que sua imagem não ficasse tão fora do foco.

"Acho melhor a gente ir pro médico." Emma disse preocupada, sem soltar a madrinha.

"Não precisa. Minha pressão abaixou porque eu não comi nada até agora, mas já tô me sentindo melhor."

"Você não pode passar a manhã inteira sem comer nada." Emma soltou a cintura da sua dinda e ofereceu sua mão a ela. Jessica segurou e as duas andaram em direção ao restaurante.

"Eu sei. Eu acordei atrasada e saí correndo." Jessica mentiu. 

***

"Eu to com dificuldade em decorar todas aquelas falas." Emma pegou mais uma garfada de comida e colocou na boca. 

"Romeu, Romeu? Por que és Romeu? Renega teu pai e abdica de teu nome; ou se não o quiseres, jura me amar e não serei mais um Capuleto. Teu nome apenas é meu inimigo. Tu não és um Montecchio, és tu mesmo. Ó! Sê algum outro nome! O que há num nome? O que chamamos uma rosa teria o mesmo perfume sob outro nome. Romeu, renuncia a teu nome; e em lugar deste nome, que não faz parte de ti, toma-me toda!"Jessica falou todo o texto de cabeça.

"Você sabe as falas?" Emma perguntou boquiaberta.

"Algumas. Romeu e Julieta era o meu livro preferido quando mais nova." Jessica disse como se não fosse nada demais. Ela remexeu a comida no prato não conseguindo colocar praticamente nada para dentro.

"Uau. Você pode me ajudar com as falas?" Emma perguntou impressionada.

"Claro, meu amor. Vai ser um prazer." Jessica sorriu para a afilhada. A advogada não podia deixar de sentir orgulho de saber que sua Emminha interpretaria a Julieta. 

A ruiva voltou sua atenção à comida e foi tomada por uma ânsia de vômito. "Já volto." Ela levantou e foi depressa ao banheiro. A ruiva entrou numa cabine e vomitou tudo o que tinha no seu estômago, tentando ao máximo tirar seu cabelo da frente. Depois ela deu descarga, lavou a boca e voltou à mesa. 

"Tá tudo bem?" Emma perguntou quando viu sua dinda de volta. 

"Sim. Meu celular vibrou e era uma ligação importante." Jessica mentiu. "Mas continua falando da peça."

Emma voltou a falar e Jessica tentou prestar atenção, porém sua cabeça já estava em outro lugar. Ela não conseguia pensar como seria aquilo possível se ela utilizava todos os métodos contraceptivos. A ruiva lembrou da vez que passou mal durante o café da manhã e vomitou tudo o que havia comido, provavelmente a pílula também. 

Jessica levou sua afilhada para a casa do Bradley e voltou para o escritório. Quando chegou, já tinham clientes esperando por ela. 

"Eu já começo a atender vocês." Jessica disse a seus clientes, que acenaram com a cabeça. 

"Manda o primeiro entrar daqui a vinte minutos." Jessica disse a sua secretária. 

"Ta bom. A senhora tá bem? Sua cara tá mais branca do que a de um fantasma!" Paty informou chocada. 

"Eu já sei que eu sou muito branca." Jessica retrucou dando as costas. 

"Não foi isso que eu quis dizer." Paty disse nervosa. 

Jessica não respondeu e foi para sua sala. 

Quando a ruiva entrou ela sentou na cadeira e apoiou a cabeça nas duas mãos. 

Essa era a coisa que ela menos queria. A ruiva pegou o celular e discou o número da madrinha. 

"Alô." Octavia disse da outra linha. 

"Oi, dinda." Jessica falou tentando conter a emoção. 

"O que foi, filha?" 

"Eu acho que eu tô grávida." Jessica disse com a voz embargada. 

"Por que você acha isso?" Octavia perguntou calmamente. 

"Porque eu fiquei tonta e não consegui comer nada no almoço. Eu to enjoada até agora."

"Sua menstruação também tá atrasada?" 

"Aham." Jessica não tinha se dado conta disso antes, agora que sua madrinha trouxera a questão da menstruação à tona, ela tinha praticamente certeza de que estava grávida. Jessica começou a chorar. 

"Calma, filha. Isso não é o fim do mundo." Octavia tentou consolá-la. 

Jessica não respondeu, ela continuou a chorando pensando em como lidaria com aquilo. 

"A gente tem que marcar uma consulta pra você." Octavia falou sendo a voz da razão. 

"Eu sei." Jessica enxugou as lágrimas. 

"Eu tô indo pra sua casa ficar com você."

"Obrigada." Jessica esperava que a madrinha dissesse isso. E era o que ela queria. A advogada não conseguia imaginar lidar com aquilo sozinha. 

"Filha?" 

"Oi."

"E o pai da criança?" 

"Não tem nenhum pai da criança porque não vai ter criança!" Jessica despejou com raiva. 

"Ok. Tudo bem. Te vejo mais tarde e vê se marca essa consulta pra amanhã." Octavia falou com sua calma de sempre. 

"Ta bom." 

Jessica desligou o telefone, lavou o rosto e voltou ao trabalho.

No intervalo do expediente a advogada foi ao banheiro. Quando desceu a calcinha, ela viu sangue. Jessica fechou os olhos e agradeceu aos céus. 

Ela pegou o telefone e digitou uma mensagem à madrinha:

Alarme falso!!!