domingo, 27 de setembro de 2020

Cabe nós dois

Ela odiava quando isso acontecia, mas seus pesadelos estavam ficando cada vez mais constantes. Eles eram tão vívidos que normalmente ela despertava num susto e ia para a cozinha tomar um copo de água na tentativa de se acalmar e voltar a dormir. E para completar ela não estava dormindo na posição que estava acostumada pela presença da pequena protuberância na região frontal. Não que ela não conseguisse mais ficar de barriga para baixo, mas ela tinha medo de esmagar o bebê e achava melhor dormir de lado. 

A ruiva tomou sua água e foi para a sala sentar um pouco. Enquanto aguardava o susto passar, seu olhar cruzou a caixa de papelão de Andrew com livros empilhados dentro. Naturalmente, Jessica pensou ser uma boa ideia ler um pouco para afastar a cabeça de pensamentos ruins e pegar no sono novamente. A advogada tirou alguns livros de dentro da caixa e um com uma ilustração colorida na capa prendeu sua atenção. Ao abaixar o olhar, ela viu o nome do autor, Andrew Butterfield. Então aquele era um dos livros infantis que seu noivo tinha escrito. Jessica fitou a capa do livro por alguns segundos, pensando em como aquele livro parecia adorável. Ela abriu a primeira página e se viu lendo a pequena e divertida história de uma vez só. No final da leitura, lágrimas preencheram os olhos da ruiva, tocada por tamanha sensibilidade do noivo na escrita infantil. Ele parecia entender tanto sobre o universo das crianças e tinha tanto gosto em entretê-las. Jessica ficou pensativa por longos minutos. Imagens do inglês brincando com a bebêzinha deles invadiram sua mente. Jessica fechou o pequeno livro infantil e colocou junto com as outras coisas da caixa. Ela voltou para a cama, colocando o braço de Andrew com cuidado em volta de si, se aproximando até ficar apenas centímetros de distância do professor e voltou a dormir. 

No dia seguinte, Andrew foi o primeiro a acordar.

"Bom dia." Ele alcançou a noiva e acariciou seu cabelo, quando a mesma acordou. "Dormiu bem?"

"Mais ou menos. Eu não consegui mais dormir de barriga pra baixo e isso acabou atrapalhando um pouco meu sono."

"Ela deu uma crescida né?" Andrew não conseguiu esconder o entusiasmo.

"Deu." A ruiva concordou.

"Eu posso sentir um pouco?" Andrew olhou-a como aqueles cachorros carentes que você não consegue dizer não.

"Claro." Jessica ainda achava que era melhor não criar laços com a criança, porém ela estava num estágio no qual não conseguia negar-lhe mais nada. 

Andrew se aproximou da ruiva, levantou a camisa dela e colocou a mão sobre sua barriga. Ele acariciou carinhosamente, sem conseguir conter a emoção.

"Desculpa." Andrew queria ter parecido mais indiferente àquele momento, porém a cada dia que passava a bebê parecia mais real. 

"Não precisa." Jessica tocou o rosto do noivo amorosamente e ele se aproximou para beijá-la.

"Sabe, eu acabei lendo um livro seu ontem." Jessica confessou, brincando com os dedos do professor. 

"Sério? Qual?"

"Aquele infantil."

"Ah." Andrew se deu conta que ela estava falando de um que ele escreveu e não de um que ele levara para ler.

"Eu gostei muito. Você escreve muito bem."

"Obrigado."

"Eu queria ler outros. Você tem eles aqui?"

"Eu só trouxe aquele mesmo. Mas eu posso trazer o resto depois."

"Tá bom."

"Agora que você já invadiu a minha privacidade e leu meu livro, você podia cantar pra mim."

"Não."

"Só um pouquinho. Todo o mundo já te ouviu cantar menos eu."

"Ok. Mas sem ser lírico."

"Você me prometeu um Eleanor Rigby em lírico, mas por ora pode ser uma com a sua voz normal."

"Qual música?"

"Qualquer uma."

"Deixa eu pensar em uma.."

"Você tá enrolando!" 

"Tá bom, tá bom."

Jessica começou a cantar serenamente. 

"Meu amor, essa é a última oração

Pra salvar seu coração

Coração não é tão simples quanto pensa

Nele cabe o que não cabe na despensa

Cabe o meu amor

Cabem três vidas inteiras

Cabe uma penteadeira

Cabe nós dois

Cabe até o meu amor, essa é a última oração

Pra salvar seu coração

Coração não é tão simples quanto pensa

Nele cabe o que não cabe na despensa

Cabe o meu amor

Cabem três vidas inteiras

Cabe uma penteadeira

Cabe nós dois

Cabe até o meu amor, essa é a última oração

Pra salvar seu coração

Coração não é tão simples quanto pensa

Nele cabe o que não cabe na despensa

Cabe o meu amor

Cabem três vidas inteiras

Cabe uma penteadeira

Cabe nós dois."

Andrew aplaudiu no final da música. 

"Bravo! Posso ouvir outra?" 

"Não." Jessica deu um beijo rápido no rosto do inglês e levantou da cama. 

"Por quê?" Andrew se sentou. 

"Outro dia. Minha voz cansou. Cof cof"

"Mas você não cantou nem dois minutos!" 

"Continua resmungando e eu corto meu lírico inédito de Eleanor Rigby. Agora, levanta pra fazer a skincare." 

"Oh look all the lonely people." Andrew começou a cantar. 

"Nem adianta."

"You're just too good to be true." Andrew cantou novamente, debochado. 

"Implicante."

Andrew riu e seguiu a ruiva até o banheiro. 

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