Andrew deu dois toques fracos na porta
e entrou antes mesmo de receber uma resposta.
“En...”, Emma se interrompeu assim que
viu o inglês entrando em seu quarto. “Ah, é você!” Ela, que estava deitada de
bruços lendo um livro sobre radioatividade e formigas, se ajeitou na cama com
as pernas dobradas, deixando o livro de lado.
“E quem mais seria?”, perguntou
Andrew, enquanto sentava na ponta da cama.
“Nessa casa? Minha dinda? Zendaya?
Mel? Levi? Theo?...”
“Touché!”
“Além do mais, faz muito tempo que
você não entra no meu quarto.”
Embora não houvesse na voz de Emma espécie
alguma de ressentimento, Andrew não deixou de notar que a frase si continha
certa mágoa. Apesar disso, o professor decidiu ignorar tal percepção, pegando o
livro que estava em cima da cama e lendo a capa. A radioatividade e as formigas:
uma relação muito mais próxima do que a humanidade imagina.
“Não sei quem é mais idiota: quem fez
esse livro ou quem o lê. Você não cansa de ler sobre animais não?”
“Para começo de conversa, esse livro
não é só sobre animais, o autor passa muito tempo falando sobre radioatividade.”,
retrucou Emma puxando bruscamente o livro da mão do padrasto. “Em segundo
lugar, se você lesse o livro, veria que não existe nada de idiota nessa
relação.”
“Eu não me odeio tanto para passar por
uma tortura dessas!” Já basta a bebê que nasceu...
“O que você veio fazer aqui, além de
criticar o meu livro?” Não havia acusação, apenas uma genuína curiosidade.
Andrew, ainda assim, fingiu se sentir ofendido.
“Quer realmente se livrar de mim,
hein?”, perguntou ele colocando teatralmente a mão no coração.
“Você sabe que não.”
A sinceridade de Emma sempre
surpreendia Andrew. Era uma frase simples, mas o modo como ela dizia, o modo
como ela o olhava, se portava diante dele, tudo isso fazia o seu coração bater
muito rápido. Não importava quantos anos se passassem nem o quanto tentasse se
manter afastado: sempre seria a Emma. Ninguém mais além dela.
“Bem, eu vim... em um timing perfeito,
diga-se de passagem...”, o professor se curvou e pegou um objeto que tinha
deixado no chão, ao lado da cama, “te dar esse livro”. Ele então entregou um
livro para a enteada.
Emma percebeu que era o objeto que Andrew
estava segurando quando entrou no quarto, mas que havia deixado de lado assim
que sentara na cama. Curiosa, analisou a capa. “Orange?”, indagou a garota, ao
ler o título do livro que levava uma laranja na capa.
“Você precisa ficar obcecada por outra
coisa além de animais. Pensei que fruta seria uma boa ideia.”
“Erika Houffman.”, Emma leu o nome da
autora. Ela abriu as páginas do livro ainda sem entender por que havia ganhado
tal presente. “É bom?”
“Não sei, você quem vai me dizer.”
“Deixa eu ver se eu entendi... você foi
para uma livraria e viu um livro sobre laranja, daí pensou ‘Laranja me lembra...
Emma! Vou comprar!’”, questionou a garota ainda sem entender do que se tratava
aquilo. Provavelmente era a forma que Andrew havia encontrado de se aproximar. Forma
meio incomum, ela não podia deixar de notar, e completamente desnecessária. Não
importava o quanto eles se afastassem, ela nunca deixaria de falar com ele por
conta disso. Ela sabia que ele estava meio para baixo por conta da bebê, embora
fingisse estar bem. A verdade é que mais do que chateada, Emma estava preocupada
com o inglês.
“Mais ou menos. Eu não comprei o
livro, eu escrevi.”
“Você é a senhora Houffman?”
Andrew soltou um risinho com a
pergunta e assentiu.
“Definitivamente: uma reviravolta.”
“É um pseudônimo.”
“É mesmo? Não tinha percebido.”
“Faz uns 7 anos que estive trabalhando
nele e só agora ficou pronto.”
“E eu vou ser a primeira leitora?”
“Segunda, na verdade. Meu editor foi o
primeiro.”
“Pretende lançar?”
“Talvez. Ainda não sei exatamente o
que fazer com ele.”
Ai, essas conversas que dizem muito sem
dizer nada, que rodeiam e tangenciam a verdadeira questão. Não era preciso ser
um gênio para adivinhar que “Orange” era sobre ela, Emma. A ruiva continuou
olhando o livro enquanto Andrew a observava em silêncio. Tantas coisas passavam
pela sua cabeça. Andrew era de escrever livros infantis, contos. Agora, um
romance? De... 447 páginas? O que havia tanto sobre ela que ele pudesse falar?
Era sobre o relacionamento dos dois? Um triângulo amoroso? Não havia informação
alguma na contracapa que indicasse o enredo.
“Não tem sinopse?”
“Ainda não. Eu ainda vou fazer...”.
Andrew parecia ansioso. “Quer que eu faça um resumo?”
“Por favor.”, Emma disse tentando conter
a ansiedade.
“A história é sobre... Bem, não me
odeie por isso, eu sei que é uma heresia, mas a licença poética... Você sabe,
né? Ela permite certas liberdades... É sobre o irmão de Deus.”
Emma estava mais confusa do que nunca.
“Irmão talvez não seja a melhor palavra.
Quando não existia nada, havia Deus... e ele. Esse ser também tinha poder, mas
não teve a mesma ‘ambição’ de Deus. Ele não criou nada, não participou de nada,
só via as coisas acontecendo. O poder dele também era mais limitado, apesar de
também conseguir criar as coisas. Mas como eu falei, ele nunca criou nada, só
era um mero espectador. Bem, ele acompanhou o mundo desde o seu começo, viu
todos os acontecimentos, antes e depois da vinda de Jesus, tudo, tudo, tudo. Assim
como Deus, ele também é onipresente, ou melhor, pode ser onipresente. Por
favor, não julgue antes de ler, mantenha na cabeça a licença poética que te
falei. Esse ser não é Deus, pelo contrário, ele respeita muito a divindade. Ele
só não entende por que Deus tem tanto apego a essas criaturas... são tão sem
graças, imperfeitas... Uma ou outra tem certa graça, mas nada que justifique
sua existência ou tamanho sacrifício. E assim ele vai acompanhando o passar dos
anos, entretido em certos momentos, entediado em outros. Os humanos vão
passando a ser muito previsíveis até mesmo em suas guerras, as coisas deixam de
ser novidade, sabe? Tudo é muito circular, é a mesma coisa com novos rótulos.
Só que tudo muda quando ele passar a reparar em uma garota em particular... Ela
já existia, mas nunca havia chamado atenção desse ser com a sua presença... até
que um evento faz com que ele comece a percebê-la e, mais do que isso, se
interesse o suficiente para querer acompanhá-la... E o enredo é basicamente esse.”.
Andrew então segurou as duas mãos de Emma. “É uma blasfêmia, eu sei, mas leia
com o coração aberto. A intenção esteve unicamente em expressar a intensidade
dos meus sentimentos naquele momento. Vai ter muitos monólogos bregas, muitos
mesmos, mas o amor não é isso? Um monte de breguice que faz sentido pra quem
sente?” Ele largou gentilmente as mãos de Emma. “Não precisa ter pressa para
ler, só me diga depois o que achou. Pode terminar o livro das formigas
primeiro, tenho certeza que, embora inútil, seja mais interessante. E desculpa a
metáfora óbvia. Nem sempre você está ruiva. Existem laranjas amarelas, sabia? De
qualquer forma, laranjas me lembram você. Até as verdes, vai entender?! Enfim...”,
disse o professor se levantando da cama. “Depois nos falamos.”
E Andrew saiu antes de receber uma
resposta de Emma e, que bom, porque ela mesma não sabia o que falar.