quarta-feira, 2 de junho de 2021

Baladas

Bloqueio de escritor. Um termo tão clichê, mas inegavelmente um fato de inúmeras ocorrências. 

Engraçado como o professor estava cheio de ideias para uma nova história, mas quando sentou na cadeira, abriu o notebook e começou a escrever, toda a sua criatividade  se esvaíra. Talvez se encarasse a tela por mais alguns minutos, ela diria as palavras certas a usar. O professor estava quase adormecendo enquanto lutava simultaneamente com a própria mente e com a página em branco do Word, até que escutou uma melodia vinda da sala. Era o som de alguém tocando piano. 

O britânico frequentemente se questionava quanto a compra do instrumento. Sua mulher mal dava bola para o luxuoso piano de cauda, parecendo mais um item ornamentativo do que qualquer outra coisa. Nenhuma vez, havia visto a esposa ao menos tentar tocá-lo. Aquele dia parecia ser uma exceção. Andrew não conhecia a música performada pela ruiva. Sua melodia soava melancólica. Provavelmente era uma das músicas que sua mulher ensaiava na infância. Ele se deu conta de que nunca a havia visto tocar, apenas quando criança. 

O professor se levantou e foi até ao cômodo principal, o som das notas cada vez mais audíveis. Quando chegou na sala, observou sua esposa imersa em seu próprio mundo. Ela parecia triste e isso o deixava triste. 

Era estranho o poder da convivência. Ele amava Jessica e por isso se casou com ela. Mas com a convivência, aquela mulher, que há alguns anos ele mal reconhecia a sua existência, cada vez mais fazia parte de sua essência. Era a sua família. 

Andrew se aproximou da ruiva e sentou ao seu lado. 

"É como andar de bicicleta. Uma vez que você aprende não esquece mais." Jessica tocou a última nota e depois se virou para o marido. 

"A maioria das pessoas fala o contrário. Que se parar de treinar, acaba esquecendo."

"Sério? Não aconteceu comigo." 

"É porque você é diferente. Uma mulher prodígio, capa de revista."

"E você é muito recalcado." 

"Chamando o marido de recalcado... que feio, Jessica Butterfield!"

"Eu tenho uma confissão a fazer."

"Qual?" 

"Jessica Butterfield é péssimo. Não combina nenhum pouco." 

"E você acha que Andrew Chastain combina?" 

"Mais do que Jessica Butterfield, com certeza." 

"Que pena. Porque agora você tá presa com o Butterfield pra sempre."

Jessica sorriu com o uso do termo pra sempre, significava que os dois nunca se separariam.

"Algum pedido especial para a pianista de hoje?"

"Que tal você me surpreender. Na verdade não sei o que você sabe tocar." Ele admitiu. 

"Haha. Então eu vou tocar uma do meu filme preferido, na verdade, de um dos meus filmes preferidos. Não sei se ele é realmente o meu preferido."

Jessica começou a tocar The Way You Look Tonight de Tonny Bennett e Andrew logo reconheceu a canção. 

"My best friend's wedding?" 

"Isso!" 

"Esse filme é tão sem graça."

"Você acha? Eu sempre achei diferente porque a personagem principal não conseguiu ficar com o cara no final. Você espera que ela vá conseguir, o filme inteiro, mas não. Foi um tapa na cara."

"Eu não colocaria bem nesses termos, mas sim, até que o final foi interessante."

"Muito!" 

"Eu acertei tão rápido que quase não te ouvi tocar. Continua pra mim?" 

"Tá bom." 

Jessica voltou a tocar, dessa vez, chegando até o final. Naquele momento, o britânico se deu conta que preferia a música só tocada do que com a voz de Tonny Bennett e também que Jessica era realmente muito boa no piano. 

"Isso foi lindo, amor. Parabéns!"

Não é como se a advogada tocasse igual a uma pianista do Teatro Municipal, mas ela era realmente muito boa para uma não profissional. Andrew estava impressionado e de certa forma orgulhoso. 

"Obrigada." 

Jessica geralmente era bem arrogante em relação aos seus talentos, mas no piano a coisa mudava um pouco de figura. A ruiva estava tímida, como se tivesse dúvida de que o elogio do marido tenha sido realmente legítimo. 

"Você sempre me surpreende." Andrew puxou a cabeça da esposa para si e a beijou. 

Jessica ficou um pouco sobressaltada ao sentir a língua do professor na sua. Depois de tantos acontecimentos, os dois não estavam usando muita língua nos beijos. Língua remetia a paixão, desejos e entregas. 

Jessica certamente ansiava por seu marido e sentia falta de beijá-lo assim. 

"Eu sei também outras músicas, sabe?" A ruiva lambeu os lábios ao final do beijo. 

"Sério? Quais?" Andrew fingiu surpresa e a advogada riu. 

"Deixa eu pensar... E se você tentar adivinhar qual música eu tô tocando com cinco notas?" 

"Cinco? Só?" 

"É. Se precisar eu aumento pra seis ou sete."

"Tá bom" 

Jessica tocou cinco notas do refrão de I believe I can fly

"I believe I can fly."

"Acertou! Viu como é fácil?" 

"Musiquinha meio brega." 

"Discordo. Outra?" 

"Vai lá." 

"Nessa as cinco notas vão ser do começo da música." 

"Tá bom." 

*Cinco primeiras notas de So far away de Carole King.*

Andrew olhou para a esposa com cara de tacho.

"Então?" 

"Toca de novo." 

"OK, mais uma vez." 

A ruiva tocou de novo. 

"Seis notas." 

"Sério?" 

"Sim, tá difícil." 

*Seis primeiras notas de So far away.*

"Sete."

"Andrew!"

"Você falou que podia até sete." 

"Mas já tá óbvio." 

"Óbvio pra você que já tá com a música na cabeça." 

"Última chance, hein." 

*Sete notas de So far away.*

"I'll stand by you?" 

"NÃO!" 

"Mas tá parecendo. Ooh why you look so sad?

O professor cantarolou. 

"Passou longe. Tava muito fácil, ainda mais com sete notas." 

"E qual era a música?" 

"So far away."

"Hã?"

"Aquela... So far away doesn't anybody stay in one place anymore..."

"Nada a ver!" 

"Como?" 

"Desculpa, amor, mas essa você não tocou direito. Mirou no so far away e acertou no I'll stand by you." 

"Eu vou ignorar essa sua insolência."

"Você sabe que eu tô certo." Ele deu um sorriso pretensioso. 

"Última música. Valendo fazer o jantar e a troca das próximas dez fraldas da Mel."

"Tudo bem. Mas toca a próxima direito, por favor. Sinto que você tá me boicotando." 

Jessica balançou a cabeça tentando prender o sorriso. "Lá vai."

"Eu também tenho que conhecer a música." 

"Cala a boca, Andrew."

"É que depois você toca uma desconhecida e sou eu que me ferro."

"Shhhhh."

Jessica tocou cinco notas do refrão de True Colors. 

"Já tá com saudades da Ivana, Jessica? Supera isso." 

"Essa música virou da Ivana agora?" 

"Pior que virou. Eu ganhei. Próximas dez fraldas da Mel são suas."

"Ei, a aposta não falava nada que se você acertasse eu ficaria com a tarefas." 

"Você falou valendo fazer o jantar e as fraldas da Mel. Olha que eu não tô louco."

"Você. Se você errasse, mas como acertou, ninguém deve nada a ninguém."

"Aposta burra essa que só eu tinha algo a perder."

"Da próxima você tem que deixar os termos bem claros."

"Pode deixar que eu vou mesmo." O inglês brincou e Jessica riu. 

"Até que eu gostei do piano." A ruiva falou, por fim. 

"Fico feliz." Andrew alisou a mão da esposa que estava apoiada em cima das teclas do piano. Jessica observou os movimentos do professor. Sua pele extremamente sensível aos seus toques. 

Quando o inglês afastou uma mecha de seu cabelo e acariciou seu rosto, Jessica capturou os lábios do marido, completamente submissa a ele.

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