quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Scenes from um reencontro

Seus olhos pareciam estar pregando uma pegadinha. Jonathan ajeitou os óculos e voltou a encarar a moça grávida de cabelos alaranjados, do outro lado da rua.

Ela estava segurando uma bebê no colo, evidenciando, finalmente ter conseguido realizar o seu grande sonho de ser mãe.

Seu relacionamento com a advogada foi tão turbulento, quanto andar numa montanha-russa de olhos vendados, onde não dava para saber o momento que viriam as subidas e as descidas, fazendo que fosse de forma súbita, intensa e destrutiva.

Momentos de paixão, entrega, fúria e tristeza, revisitaram a cabeça do psicólogo, tudo de uma só vez. Tudo nos dois era muito intenso, os choros, as risadas, o beijo, o sexo, as brigas... Eram duas pessoas quebradas tentando encontrar no outro a peça que faltava em si. Jessica, de muitas formas, foi sua redenção e sua sina. O tempo que passaram juntos, apesar de breve, ficou gravado em sua memória, trazendo consigo, um sabor agridoce.

O fim foi arrastado e doloroso. A intenção era ofender, ferir, humilhar... Causar lesões tão profundas que, mesmo que se cicatrizassem, deixariam marcas permanentes um no outro.

A ambiguidade da ruiva e de seus sentimentos era transmitida por palavras, ditas e não ditas, fazendo com que se sentisse o homem mais sortudo e miserável de todos. 

Ao observá-la com uma filha no colo e um filho no ventre, chegou a conclusão de que ou a advogada tinha reatado com seu ex-marido, ou outro homem se mostrou apto para a posição que lhe foi negada anos atrás.

Jessica virou o rosto e agora o olhava como se tivesse visto uma assombração.

Jonathan abaixou a cabeça e começou a andar na direção oposta. Poucos minutos recordando o passado foi o suficiente para voltar ao estado de insignificância que sentiu na época que estava com ela. Ao andar dando passos largos, tentando fugir daquela situação, escutou a advogada gritando seu nome. Aquela voz que já tinha sido veículo de palavras tão doces, e também, tão desprezíveis. Seu coração disparou. Ele virou.

Jonathan observou Jessica se aproximar um pouco ofegante com a bebê no colo.

"Tá fugindo de mim?" A ruiva deu um sorriso sarcástico, aquele que Jonathan conhecia muito bem.

"Você me pegou." Jonathan respondeu sem graça, colocando as mãos no bolso.

"Eu vi você olhando."

Jessica soou doce, diferente da primeira e da última vez em que a viu.

"Desculpa. Sua filha?" Jonathan apontou com a cabeça.

"É." Jessica ajeitou o peso da bebê no colo.

"Parabéns. Você conseguiu tudo o que queria." Jonathan falou com um quê de ironia.

"E você? Vai bem?" Jessica ignorou a atitude provocativa de Jonathan. 

"Sim."

"Tá casado?"

"Não, ainda divorciado." Jonathan riu sem humor.

"A gente podia ir pra algum lugar... conversar um pouco."

"Não."

"Jonathan..."

Quando Jessica o chamou assim, foi como se o tempo não tivesse passado.

"Você não vai querer um alcoólatra perto de você e da sua filha."

Jonathan estava muito diferente desde a última vez em que o viu. Estava mais magro, mais cabisbaixo, mais triste... muito diferente do cara confiante que liderava as reuniões dos Viciados Anônimos.

"Você sabe que isso não é verdade. Nós dois estamos no mesmo barco. Não sou melhor que você em nada."

"Não tente se equiparar a mim."

"Você mais do que ninguém sabe que as aparências enganam. Não tô tão bem quanto pareço estar."

"Você parece ótima."

"Não estou."

"Tudo bem. Podemos conversar." Jonathan cedeu.

"A gente pode tomar um café, o que acha?"

"Vamos lá."

Os dois caminharam em silêncio para a cafeteria, parecendo um pouco com a primeira vez que saíram juntos.

"É do Bradley?" Jonathan perguntou quando terminaram de fazer seus pedidos.

"Não. É do melhor amigo dele."

"Imagino que não sejam mais tão amigos assim." Ele riu debochado.

"Não, não são mais."

"E esse que tá pra chegar também é do melhor amigo do seu ex?"

"Esses. São dois. E são dele também. Nós nos casamos no final do ano passado."

"Parabéns."

"Obrigada. E como vai a loja?"

"Faliu com a pandemia."

Jessica enrugou a testa com a resposta. "Sinto muito."

"Sente?"

"O que você quer dizer com isso? É claro que eu sinto. Você acha o quê? Que eu ficaria feliz em ouvir isso?"

"Feliz não. Apática."

"Não, eu não fiquei apática. " Jessica falou irritadiça.

"Tudo bem, não precisa ficar irritada."

"Eu não tô irritada."

"Tem razão, má leitura minha." Jonathan achou melhor dar um passo para trás para não deixar o clima pesado. 

"E você tá fazendo o que agora sem a loja?"

"Pedindo esmola."

"É sério?"

​"Não né."

"P***, Jonathan! Piada de péssimo gosto."

"Desculpa. Não cheguei nesse nível ainda, mas tô quase lá." 

"Você tá trabalhando?"

"Arrumei um serviço de segurança."

"E tá morando naquele apartamento ainda?"

"Não. Ficou muito caro pra eu pagar o aluguel e as contas. Acabei indo morar com os meus pais."

O olhar da advogada caiu. Ela não sabia o que dizer. Ver Jonathan passando dificuldade apertou seu coração. 

"Você voltou a beber?"

"Quando minha loja faliu? Sim. Muito."

"E agora?"

"De vez em quando. Tem dias e dias. Eu tô bem pior desde a última vez que você me viu."

Jessica colocou a mão em cima da dele, porém Jonathan a recolheu rapidamente, envergonhado com as sujeiras da sua mão.

"Jonathan..."

Jonathan começou a chorar contra a sua vontade. 

Jessica levou sua cadeira pra perto dele e colocou o braço que não estava segurando a Mel, em volta dos seus ombros e fez carinho de leve. Ela ficou escutando o choro do amigo, em silêncio, até ele se recuperar.

"Me desculpa." Ele tirou o óculos para enxugar as lágrimas.

"Me dá aqui." Jessica pegou os óculos da mão dele e começou a limpar com um lenço de papel.

Aquele movimento lembrou muito ao passado. Jonathan observou a ruiva passando o lenço com perfeccionismo e cuidado, enquanto Mel tentava pegar no óculos com sua mãozinha.

"Vê se tá bom." Jessica passou o óculos para ele. 

"Tá ótimo. Obrigado." Jonathan colocou o óculos novamente. "Sua filha é muito linda. Deve ser a bebê mais bonita que eu já vi."

"Obrigada." Jessica agradeceu, gentilmente. 

"Ela lembra muito você." Jonathan completou. 

"Sério? Todo mundo diz que ela lembra mais meu marido."

"Bem, eu não conheço seu marido. Mas que ela lembra muito a você, ela lembra."

"Quer segurar ela um pouquinho?" 

"Tem certeza? Eu tô meio suado. Vim pra cá de metrô e tava bem cheio."

"Ela aguenta." Jessica riu. 

"Tudo bem."

Jessica entregou sua bebê para Jonathan. Ele começou a falar com Mel fazendo caretas e uma voz engraçada. 

"Ela gostou de você. Você não tem ideia do quanto é difícil fazer a Mel rir."

"Mel é um nome muito bonito." Jonathan constatou. 

"Obrigada. Mas não combina muito com ela não. Ela é mais azedinha. Principalmente de manhã."

"Então ela puxou a mãe."

"ESSA é uma coisa que eu sempre escuto." Jessica riu. 

"Fico feliz por você. Eu sei o quanto você queria ter um filho. Fico realmente muito muito feliz."

Jonathan lembrou da vez que Jessica pirou quando achou que podia estar grávida dele. Ela agiu como se fosse a pior coisa do mundo engravidar de alguém como ele e fez questão de demonstrar a todo o momento o quanto ela detestaria a ideia de ter um filho seu. Ele ficou tão magoado que jurou nunca mais tê-la de novo, porém, quando esta descobriu que era alarme falso, usou de seu charme para seduzi-lo de volta à sua cama. 

Muitas vezes Jonathan se sentiu manipulado pela ruiva, enquanto seus sentimentos por ela eram fortes e reais, a advogada parecia apreciá-lo apenas de quando em quando. 

"Eu sinto que joguei muito das minhas frustrações em você. Não foi muito justo. Desculpa." A ruiva revelou. 

"Não! Fico feliz que tenha jogado. Foi melhor do que quando você era fechada, e fingia que tava tudo bem, quando seus olhos diziam justamente o contrário." Jonathan falou ainda brincando com Melzinha. 

"Você apareceu na minha vida numa das minhas piores épocas." Jessica revelou pensativa. 

"E você apareceu na minha numa das minhas melhores."

"Você era tão perfeito que me dava raiva."

"Minha vida sempre foi longe de ser perfeita."

"É que você controlava muito bem as suas emoções. Você sempre teve um ótimo controle emocional." 

"Meus pais diriam o contrário. Minha ex-mulher, nem se fala."

"Eu tinha inveja de você."

"E agora você tem pena. Olha como o mundo dá voltas." Jonathan falou irônico. 

"Eu não tenho pena."

"Fala sério, Jessica. Você me olha como as pessoas olham um cachorro de rua com fome."

"Eu me importo com você. É óbvio que não gostei de saber que sua loja faliu e que você tá trabalhando de segurança num... Aonde?"

"Numa boate."

"Numa boate."

"Poderia ser pior."

"​Eu sei. Pelo menos você tem uma casa, mesmo que seja a dos seus pais, um trabalho, tá com saúde... Tem muita gente em situações bem mais adversas."

"Verdade, não posso reclamar. E como você tá? Desde a última vez que eu te vi, você parece outra pessoa."

"Eu não era eu mesma naquele dia. Foi como se um espírito ruim tivesse se apossado de mim e dito todas aquelas coisas horríveis pra você. Eu vi o que minhas palavras estavam fazendo e eu me senti péssima, mas não consegui parar. Depois daquela noite eu fui pra casa e me senti tão desprezível. E o pior é que você foi embora achando que eu não sentia nada por você, o que estava longe de ser verdade."

"Não adianta ficar remoendo o passado."

"Eu só queria me desculpar por como eu te tratei. Não pode ser coincidência a gente se reencontrar depois de todos esses anos. Deve ter sido pra eu poder me retratar, não é?" Jessica deu um riso nervoso.

"Não precisa se desculpar, sério. Eu também errei muito, por mais que eu tenha me feito de superior na época."

"Eu fiquei com a impressão que você achou que eu queria só..."

"Sexo?"

"Isso." Jessica riu e Jonathan riu junto. 

"Pode passar uma eternidade, mas você sempre vai ter dificuldade de falar sexo."

"Patético, né?"

"Eu acho bonitinho."

"Aham."

"E como você tá?"

"Comparado a última vez que você me viu, bem melhor. Mas eu tenho me sentido uma força negativa."

"Como assim?"

"Eu acho que eu deixo as pessoas à minha volta tristes ou estressadas. Tipo, tá todo mundo bem, rindo e brincando, e aí eu chego e deixo todo mundo infeliz, que nem uma fruta estragada que acaba contaminando as outras. Aí eu fico triste, com raiva, mais triste e começo a pensar num monte de besteira."

"E você ainda tem feito aquilo?"

"Desde que eu descobri que tava grávida dos gêmeos, não. Da última vez eu acabei perdendo o controle e a coisa ficou muito séria. Foi ótimo, mas péssimo ao mesmo tempo. Eu tenho muito medo de algo acontecer com os bebês por minha causa."

"E o que você tá fazendo pra controlar a vontade?"

"Minha regra é não usar objetos cortantes durante a gravidez."

"Seu marido sabe?"

"Ele sabe que acontece, mas não tem noção da frequência e nem como eu faço. Eu não quero que ele se preocupe."

"E você conversa sobre isso com alguém?"

"Não."

"Você deveria ter alguém pra conversar sobre isso."

"Às vezes eu falo com o meu psicólogo, mas não é um assunto que me sinto confortável em falar. Eu sou muito quebrada, Jonathan. Nenhum tratamento no mundo vai mudar isso."

"As melhores flores vêm em vasos quebrados."

"Tenho quase certeza que o ditado não é esse."

"É o que eu acredito."

"Eu quero te fazer uma proposta."

"Qual?"

"Eu quero que você trabalhe comigo, na minha empresa. Você pode ficar na área de recursos humanos.  O salário não é ótimo, mas também não é ruim. Você vai poder sair da casa dos seus pais, se for do seu interesse, é claro, e também é mais seguro do que trabalhar como segurança de uma boate. O que acha?"

"Obrigado pela oferta, mas não."

"Por que não? Não seja orgulhoso."

"Não é orgulho."

"Então é o quê?"

"Você nem me entrevistou, nem viu meu currículo, aposto que têm várias pessoas mais aptas pro cargo do que eu."

"Só que eu sou a chefe e eu quero você."

Jonathan arregalou os olhos.

"Pro cargo." Jessica completou.

"Não tenho interesse num cargo que só consegui porque comi a chefe."

"Wow." Jessica exclamou, surpresa.

"Desculpa."

"Tudo bem. Você quem sabe." Jessica tomou um gole do seu latte.

"Não, me desculpa. Fui muito infeliz no que eu disse."

"Foi."

"É que eu não quero me sentir como se eu não merecesse tá ali e ver meus colegas de trabalho me olhando da mesma forma."

"Claro que você merece. Você é uma das pessoas mais esforçadas que eu conheço, e acima de tudo, é uma pessoa que eu confio. Se você quiser, você pode conhecer a empresa primeiro, ver como é o departamento pessoal e depois você me dá a resposta."

"Tudo bem." Jonathan disse e a ruiva sorriu. "Aceito conhecer a empresa." Ele completou e voltou a brincar com a Mel. 

"Justo. Você vai pra onde depois daqui? Quer uma carona?"

"Não, obrigado. Quero seu número de telefone, se você não se importar." 

Os dois trocaram os telefones, se despediram, e depois cada um foi para o seu canto.

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